sexta-feira, março 03, 2017

Sasayaki

Arte by Guweiz
Em roupas negras e já sem os mons é chegado o momento de uma última caminhada por Otosan Uchi, em direção ao portão norte. Deixar a inner city já revela contrastes que ela não observava a muitos anos. Sua rota faz um leve desvio, a noroeste há um pequeno distrito governado pelo Escorpião. Ali esconde-se um templo à Hofukushu, onde a samuraiko entra a passos ligeiros para rapidamente ajoelhar-se diante da estátua de estética sinuosa tipicamente escorpiã.


- O-Hofukushu-sama, por favor guie a minha jornada. Que os inocentes sejam poupados da minha ira para que ela possa recair toda sobre aqueles que compartilham o sangue e os modos de Mirumoto Onai. Eu não devo esquecer, ou perdoar, até que seja feita justiça que apazigue meu espírito.


Ela cumprimenta a estátua três vezes, em uma reverência que leva a testa até o chão, oferece um tablete de incenso, passa alguns instantes ali juntando daquelas forças que precisa para levantar e continuar uma viagem que será longa e desagradável. Após um último cumprimento retira-se em silêncio.


… … …


Chove, a água pesa nas roupas e parece tornar as cordas do waraji cada vez mais apertadas, ou talvez sejam os pés que estejam inchados da longa caminhada. As pernas doem. Já úmidas algumas mechas de cabelo escapam do jingaza. Era uma água fria que deixava as vestes  pesadas aumentando o fardo da carga. Estava cansada, odiava estradas. Se lembrava da sensação que teve quando criança, ao perder-se na estrada esperando voltar para casa depois de ‘fugir’ de Kyuden Bayushi. Fora resgatada por um bushi naquela ocasião. Naquela ocasião era uma criança do Escorpião.
Agora… sabe-se lá o que era agora. Um ronin cortesão pareceria apenas uma piada. Não importava o que quer que ela fosse e o que quer que fosse fazer, sabia que teria que fazer sozinha. Às vezes sentia-se tola, seu pedido para deixar o clã custava caro e lhe tolherá todas as possibilidades de uma viagem confortável. Ainda assim, sabia que havia feito uma escolha que era apenas sua, não queria ajuda. Outra parte de si ainda encontrava conflito entre proteger o Crane, ao deixá-lo para trás como havia feito, ou valer-se do dinheiro dele para alcançar o que desejava. Embora houvesse conflito, a decisão já estava feita, e o Crane não poderia ser implicado em o que quer que ela fizesse agora… nem o Escorpião.


Além do jingaza a água caia como uma cortina densa o bastante para nublar as formas da estrada. Os joelhos fraquejaram, tudo doía, conforme o corpo pendeu a mão foi obrigada a levantar-se encontrando apoio no tronco áspero de uma árvore. Doeu.
Virou-se apoiando as costas na árvore. Trazendo a mão junto do rosto via um arranhão. Não sangrava como ela esperava. A pele antes delicada já tinha os calos e a textura esperada nas mãos de alguém iniciado nas ‘artes’ da espada.
Fitou a própria mão por longos instantes, esperando, sentindo arder quando a água da chuva escorria por ali mas, nada de sangue.


Hokora é um pequeno santuário, em geral fica a beira das
estradas nas proximidades de grandes santuários. 
Quando levantou o rosto pode avistar um hokora ao lado da estrada. Ela se aproximou uns passos para encontrar ali os símbolos das sete fortunas. A visão foi o bastante para colocar-lhe  o âmago em chamas.
Correu para junto do pequeno santuário com raiva e força que pareciam provir do jigoku. As mão apoiadas na base do telhado, ela empurrou. A pedra balançou mas não cedeu. Ela rangeu os dentes em um grito de esforço que certamente poderia ser ouvido ao longo da estrada, e insistiu forçando até jogar o telhado no chão.
Podia agora olhar as estátuas, de cima, sem ter que se ajoelhar na estrada, apontou-lhes o dedo de forma acusadora e firme:

-Vocês! Vocês me abandonaram e abandonaram a verdade. Vocês viram tudo e deixaram aquilo acontecer!

Chutou as estátuas derrubando parte delas conforme as lágrimas lhe tomavam os olhos e se misturando a chuva. Continuava a derrubar as estátuas com chutes menos enérgicos, menos violentos a cada golpe, mas incansáveis. Continuou até que todas as sete estivessem no chão. A decisão na voz aos poucos era substituída por um notável desespero durante esse trabalho:

-Vocês mentiram. Vocês não estão olhando nada… não se importam com nada…


Viu as estátuas espalhadas no chão, não havia sobrado nada para derrubar, nada para dizer, e ainda assim seus sentimentos não estavam em paz. Conforme perdia as forças do momento não conseguia mais aguentar o peso das roupas e da mochila molhada nos ombros, a dor nas pernas e pés. Sentava-se lentamente, sem a elegância de antes, com o corpo escorado no que havia sobrado do hokora. E chorava, chorava copiosamente esperando que as lágrimas pudessem carregar para fora tudo o que sentia. Mas elas não podiam…

As Sete Fortunas

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